Tentei ignorar, juro. Mas foi completamente impossível.
Acontece que moro a duas quadras do Caesar Park, onde Madonna ficou. Do meu
monástico 12º andar, dias e noites ouvia lá embaixo os gritos daquela
involuntária homenagem póstuma a Fellini. Certa manhã, acordei com um barulho
estranhíssimo sob a janela: helicópteros sobrevoavam a área. E, mesmo tendo que
desviar da Augusta para chegar à Paulista nas minhas peregrinações urbanas, não
consegui mais ignorar. Mesmo decidindo não ir ao show (pruridos ideológicos,
tipo eeeu, colaborar com esse Grosseiro Símbolo da Alienação Capitalista?),
acabei indo. Na última hora, meu amigo Denis Escudero acenou com um irrecusável
convite. E fui.
Safári, claro. Uma hora de ônibus, duas na fila, mais três
até começar. Dúvidas pleistocênicas, oh Deus, já não tenho idade, devia ficar
em casa lendo Cervantes no original, que juventude idiota, não tenho mesmo
vergonha na cara & etc. Então as luzes apagaram, a bailarina seminua desceu
pela corda. E eu adorei. No dia seguinte, de cama por causa da Madonna,
descobri algo inteiramente insuspeitado – ela é do bem.
Nem ofensiva nem obscena, Madonna representa tudo aquilo que
todos nós gostaríamos de ser e ter: o prazer sem culpa. Acho que uma figura
assim não existiria em tempos e espaços sem o vírus da aids, que bloqueou a
prática sexual e incendiou todas as formas imaginárias e indiretas da
sexualidade. Veja-se, no mundo inteiro, a maré de revistas, filmes, vídeos pornográficos,
sexo por telefone e todas as formas de, digamos, fazer a coisa da maneira
mental, não física – e portanto sem riscos. Madonna faz no palco tudo aquilo
que as pessoas (as saudáveis) fazem na cabeça. Exemplo – um crioulo fortíssimo,
com sotaque baiano, vendendo cerveja na fila, gritava o que todo mundo sentia: “Minha
gente, quero ser que nem a Madonna para dar mais que chuchu na cerca!”
Infelizmente, observei outras atitudes, também sintomáticas
da era da aids. No palco (fantasia) pode, no real (vida) não. A drag queen
montadésima foi atacada aos gritos de “bicha! louca! piranha!”. Tudo na maior
agressividade. Mas, durante as duas horas da realidade fantástica instaurada
pelo show, há respeito no ar. A vida suposta de Madonna e seu reflexo
coreografado (belamente, pelo brasileiro Alexandre Magno), mesmo entre berros
excitados, é recebida com encantamento. Madonna é um pouco como aquele
transatlântico que atravessa ao longe a madrugada em Amarcord, de – justamente – Fellini.
Na saída (Sáfari Parte II, o Retorno) Denis observou: “Engraçado,
parece que tem uma espécie de tristeza no ar”. E tinha. Pelas ladeiras do
Morumbi, a noite tinha ficado fria, guardas tentavam organizar um trânsito
histérico, os ônibus não vinham, as ruas pareciam sujas, as calçadas
destruídas. Fugaz, o sonho passara. Ninguém era mais Madonna. Nem ela, de volta
ao hotel, enjaulada lá no alto, enquanto cá embaixo o povo só queria receber
uma espécie de autorização – a de que se pode também, mesmo em tempos sombrios
e sem graça, ser meio Madonna na vida.
A moça fez um enorme bem ao astral do Brasil. Parece que
gostou de nós, e a gente precisa tanto, especialmente o Rio de Janeiro. No meio
de dias estranhos, pesados (as mortes de Fellini, River Phoenix, do maravilhoso
Felipe Pinheiro, bombas por toda a Alemanha, lama grossa em Brasília), Madonna
deixou no ar um sopro de vitalidade. Saúde, alegria, tesão. Com ou sem vírus e
crise, Madonna dá vontade dessa coisa sagrada: viver. Por isso mesmo, Deus a
abençoe. E pouco importa se Ele não existe, porque ela também não existe.
Existem símbolos. São eles que mobilizam e, mesmo quando não bastam, são
necessários. Melhor ainda se forem belos. E, repito, do bem. Do lado certo da
luz, compreende?
Nenhum comentário:
Postar um comentário