domingo, 9 de dezembro de 2012

Na cama por causa de Madonna



Tentei ignorar, juro. Mas foi completamente impossível. Acontece que moro a duas quadras do Caesar Park, onde Madonna ficou. Do meu monástico 12º andar, dias e noites ouvia lá embaixo os gritos daquela involuntária homenagem póstuma a Fellini. Certa manhã, acordei com um barulho estranhíssimo sob a janela: helicópteros sobrevoavam a área. E, mesmo tendo que desviar da Augusta para chegar à Paulista nas minhas peregrinações urbanas, não consegui mais ignorar. Mesmo decidindo não ir ao show (pruridos ideológicos, tipo eeeu, colaborar com esse Grosseiro Símbolo da Alienação Capitalista?), acabei indo. Na última hora, meu amigo Denis Escudero acenou com um irrecusável convite. E fui.
Safári, claro. Uma hora de ônibus, duas na fila, mais três até começar. Dúvidas pleistocênicas, oh Deus, já não tenho idade, devia ficar em casa lendo Cervantes no original, que juventude idiota, não tenho mesmo vergonha na cara & etc. Então as luzes apagaram, a bailarina seminua desceu pela corda. E eu adorei. No dia seguinte, de cama por causa da Madonna, descobri algo inteiramente insuspeitado – ela é do bem.
Nem ofensiva nem obscena, Madonna representa tudo aquilo que todos nós gostaríamos de ser e ter: o prazer sem culpa. Acho que uma figura assim não existiria em tempos e espaços sem o vírus da aids, que bloqueou a prática sexual e incendiou todas as formas imaginárias e indiretas da sexualidade. Veja-se, no mundo inteiro, a maré de revistas, filmes, vídeos pornográficos, sexo por telefone e todas as formas de, digamos, fazer a coisa da maneira mental, não física – e portanto sem riscos. Madonna faz no palco tudo aquilo que as pessoas (as saudáveis) fazem na cabeça. Exemplo – um crioulo fortíssimo, com sotaque baiano, vendendo cerveja na fila, gritava o que todo mundo sentia: “Minha gente, quero ser que nem a Madonna para dar mais que chuchu na cerca!”
Infelizmente, observei outras atitudes, também sintomáticas da era da aids. No palco (fantasia) pode, no real (vida) não. A drag queen montadésima foi atacada aos gritos de “bicha! louca! piranha!”. Tudo na maior agressividade. Mas, durante as duas horas da realidade fantástica instaurada pelo show, há respeito no ar. A vida suposta de Madonna e seu reflexo coreografado (belamente, pelo brasileiro Alexandre Magno), mesmo entre berros excitados, é recebida com encantamento. Madonna é um pouco como aquele transatlântico que atravessa ao longe a madrugada em Amarcord, de – justamente – Fellini.
Na saída (Sáfari Parte II, o Retorno) Denis observou: “Engraçado, parece que tem uma espécie de tristeza no ar”. E tinha. Pelas ladeiras do Morumbi, a noite tinha ficado fria, guardas tentavam organizar um trânsito histérico, os ônibus não vinham, as ruas pareciam sujas, as calçadas destruídas. Fugaz, o sonho passara. Ninguém era mais Madonna. Nem ela, de volta ao hotel, enjaulada lá no alto, enquanto cá embaixo o povo só queria receber uma espécie de autorização – a de que se pode também, mesmo em tempos sombrios e sem graça, ser meio Madonna na vida.
A moça fez um enorme bem ao astral do Brasil. Parece que gostou de nós, e a gente precisa tanto, especialmente o Rio de Janeiro. No meio de dias estranhos, pesados (as mortes de Fellini, River Phoenix, do maravilhoso Felipe Pinheiro, bombas por toda a Alemanha, lama grossa em Brasília), Madonna deixou no ar um sopro de vitalidade. Saúde, alegria, tesão. Com ou sem vírus e crise, Madonna dá vontade dessa coisa sagrada: viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe. E pouco importa se Ele não existe, porque ela também não existe. Existem símbolos. São eles que mobilizam e, mesmo quando não bastam, são necessários. Melhor ainda se forem belos. E, repito, do bem. Do lado certo da luz, compreende?

Caio Fernando Abreu 
O Estado de S. Paulo, 14/11/1993

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