quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

“Eu te amei muito. Nunca disse, como você também não disse, mas acho que você soube. (...) Pena também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não devia ter vergonha do que é bonito. Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas — se um dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direi delas, caso contrário não será preciso. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.”
 
Caio F.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Poema - Cazuza

Eu hoje tive um pesadelo
E levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo
E procurei no escuro
Alguém com o seu carinho
E lembrei de um tempo

 Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo

Hoje eu acordei com medo
Mas não chorei, nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito
Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim

De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás
 



Letra de Cazuza, musicada por Frejat e interpretada por Ney Matogrosso.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Na cama por causa de Madonna



Tentei ignorar, juro. Mas foi completamente impossível. Acontece que moro a duas quadras do Caesar Park, onde Madonna ficou. Do meu monástico 12º andar, dias e noites ouvia lá embaixo os gritos daquela involuntária homenagem póstuma a Fellini. Certa manhã, acordei com um barulho estranhíssimo sob a janela: helicópteros sobrevoavam a área. E, mesmo tendo que desviar da Augusta para chegar à Paulista nas minhas peregrinações urbanas, não consegui mais ignorar. Mesmo decidindo não ir ao show (pruridos ideológicos, tipo eeeu, colaborar com esse Grosseiro Símbolo da Alienação Capitalista?), acabei indo. Na última hora, meu amigo Denis Escudero acenou com um irrecusável convite. E fui.
Safári, claro. Uma hora de ônibus, duas na fila, mais três até começar. Dúvidas pleistocênicas, oh Deus, já não tenho idade, devia ficar em casa lendo Cervantes no original, que juventude idiota, não tenho mesmo vergonha na cara & etc. Então as luzes apagaram, a bailarina seminua desceu pela corda. E eu adorei. No dia seguinte, de cama por causa da Madonna, descobri algo inteiramente insuspeitado – ela é do bem.
Nem ofensiva nem obscena, Madonna representa tudo aquilo que todos nós gostaríamos de ser e ter: o prazer sem culpa. Acho que uma figura assim não existiria em tempos e espaços sem o vírus da aids, que bloqueou a prática sexual e incendiou todas as formas imaginárias e indiretas da sexualidade. Veja-se, no mundo inteiro, a maré de revistas, filmes, vídeos pornográficos, sexo por telefone e todas as formas de, digamos, fazer a coisa da maneira mental, não física – e portanto sem riscos. Madonna faz no palco tudo aquilo que as pessoas (as saudáveis) fazem na cabeça. Exemplo – um crioulo fortíssimo, com sotaque baiano, vendendo cerveja na fila, gritava o que todo mundo sentia: “Minha gente, quero ser que nem a Madonna para dar mais que chuchu na cerca!”
Infelizmente, observei outras atitudes, também sintomáticas da era da aids. No palco (fantasia) pode, no real (vida) não. A drag queen montadésima foi atacada aos gritos de “bicha! louca! piranha!”. Tudo na maior agressividade. Mas, durante as duas horas da realidade fantástica instaurada pelo show, há respeito no ar. A vida suposta de Madonna e seu reflexo coreografado (belamente, pelo brasileiro Alexandre Magno), mesmo entre berros excitados, é recebida com encantamento. Madonna é um pouco como aquele transatlântico que atravessa ao longe a madrugada em Amarcord, de – justamente – Fellini.
Na saída (Sáfari Parte II, o Retorno) Denis observou: “Engraçado, parece que tem uma espécie de tristeza no ar”. E tinha. Pelas ladeiras do Morumbi, a noite tinha ficado fria, guardas tentavam organizar um trânsito histérico, os ônibus não vinham, as ruas pareciam sujas, as calçadas destruídas. Fugaz, o sonho passara. Ninguém era mais Madonna. Nem ela, de volta ao hotel, enjaulada lá no alto, enquanto cá embaixo o povo só queria receber uma espécie de autorização – a de que se pode também, mesmo em tempos sombrios e sem graça, ser meio Madonna na vida.
A moça fez um enorme bem ao astral do Brasil. Parece que gostou de nós, e a gente precisa tanto, especialmente o Rio de Janeiro. No meio de dias estranhos, pesados (as mortes de Fellini, River Phoenix, do maravilhoso Felipe Pinheiro, bombas por toda a Alemanha, lama grossa em Brasília), Madonna deixou no ar um sopro de vitalidade. Saúde, alegria, tesão. Com ou sem vírus e crise, Madonna dá vontade dessa coisa sagrada: viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe. E pouco importa se Ele não existe, porque ela também não existe. Existem símbolos. São eles que mobilizam e, mesmo quando não bastam, são necessários. Melhor ainda se forem belos. E, repito, do bem. Do lado certo da luz, compreende?

Caio Fernando Abreu 
O Estado de S. Paulo, 14/11/1993