quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Poema da Gare de Astapovo


O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,
Contra uma parede nua...
Sentou-se e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo sozinho àquela hora,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos de infância!


Mário Quintana

sábado, 24 de outubro de 2009

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Divagações sobre um punhado de areia

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Dia desses, li uma frase que dizia mais ou menos assim: "O amor é como um punhado de areia na mão. Com sabedoria, pode-se criar um reinado. Mas se a mão fecha demais, escorre pelos dedos. E se aberta demais, voa pelos ares." Cito de memória, não sei se correto. E o autor, constava como desconhecido.

Posso dizer que já tive nas mãos alguns punhados de areia. Já de início, é preciso agradecer por ter-se nas mãos, justamente um punhado de areia. E não, outras substâncias menos concretas, como a água, difícil de deter. Quando queremos muito algo, tendemos a segurá-lo com todas as forças. Mas a força afugenta. É preciso, então, ponderar. Insinuar, fazer tipos, mascarar o desejo, a vontade. É preciso, estar afim, sem parecer estar tão afim. Da mesma forma que, se a mão afrouxa demais, a coisa pode escapar por entre os dedos, não persistir. Qual seria a fórmula então? Um abraço folgado em vez de um bem apertado. Aproximações breves e alternadas, ao invés de presenças constantes. Palavras que apenas insinuem, em vez das que realmente dizem.

Neste "querer, sem querer", pergunto: quando é que a coisa acontece de fato? É quando há a vontade de dizer, em vez de insinuar? É quando há a necessidade da presença constante, ao invés da aproximação breve e alternada? É quando os abraços folgados e sem vigor dão lugar aos beijos e abraços apertados?

Com sabedoria, pode-se criar um reinado.

domingo, 11 de outubro de 2009

Aos meus amigos


Nem tão beats como os célebres amigos de Allen Ginsberg, mas com tantas histórias quanto, seguem estas linhas complementares ao Uivo beatnik que contam a história de outro grupo de amigos, um tanto mais ao sul...

que andaram sob a chuva pela madrugada cantarolando Fafá de Belém,

que pintaram seus cabelos de azul e coloriram paredes, toalhas, lençóis e cortinas de quartos de motel,

que vestiram-se com saias de tule verde-limão e celebraram a vida dançando ao som de Xuxa Meneguel,

que rolaram na grama de madrugada aos socos e golpes de taquara interrompendo festas de aniversário,

que dormiram ao lado de B e acordaram ao lado de W,

que tiveram ataques de sonambulismo em horas inapropriadas,

que em plena vertigem destruíram banheiros, beijaram os pés de estátuas de Netuno, vomitaram em estações de trem ou abraçados em vasos sanitários,

que abraçados foram atropelados,

que beberam shampoo por achar que a vida estava um tanto densa, pesada demais, na esperança, talvez, de flutuar como bolha de sabão,

que tantas vezes lutaram pelo amor, tiveram a ilusão de tê-lo e no fim voltaram machucados para o colo uns dos outros,

que dançaram Like a Virgin em finais de tarde no Parque da Redenção e se conheceram,

que tomaram porres históricos à base de vinho barato aglomerando-se pelas calçadas e interagindo com estranhos,

que estudaram arduamente para, quem sabe, em um futuro não muito distante exercerem a profissão de corretores imobiliários,

que foram abordados ao nascer do dia por bandos de ogros curiosos-pederástas que fizeram seu circo e os enxotaram a leves pancadas de cassetetes nos traseiros,

que passaram feriados de carnaval reunidos em apartamentos, praticamente sem dinheiro, alimentando-se a suco, sanduíche e carne de soja,

que esgotaram garrafas de absinto em boates litorâneas,

que percorreram a cidade pelos lugares mais improváveis, dormiram em sofás de casas desconhecidas e foram acordados por travestis,

que por ironia do destino se pecharam em quartos escuros,

que arranjaram uma Igreja alternativa para rezarem sempre que quiserem,

que praticamente todo o tempo vivem como casais, apesar de serem simplesmente amigos,

que estiveram em camarins de grandes teatros entrevistando divas da comédia,

que arremessaram garrafas ao se sentirem traídos,

...são estes os abençoados.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Uivo

por Allen Ginsberg

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa, "hipsters" com cabeça de anjo ansiado pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,

que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades contemplando jazz,

que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos,

que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake entre os estudiosos da guerra,

que foram expulsos das universidades por serem loucos & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,

que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestas de papel, escutando o Terror através da parede,

que foram detidos em suas barbas púbicas voltando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova York,
(...)

que se acorrentaram aos vagões do metrô para o infindável percurso do Battery ao sagrado Bronx de benzedrina até que o barulho das rodas e crianças os trouxesse de volta, trêmulos, a boca arrebentada e o despovoado deserto do cérebro esvaziado de qualquer brilho na lúgubre luz do Zoológico,

que afundaram a noite toda na luz submarina de Bickford's, voltaram à tona e passaram a tarde de cerveja choca no desolado Fuggazi's escutando o matraquear da catástrofe na vitrola automática de hidrogênio,

que falaram setenta e duas horas sem parar do parque ao apê ao bar ao Hospital Bellevue ao Museu à Ponte de Brooklyn,
(...)

que deram voltas e voltas à meia-noite no pátio da estação ferroviária perguntando-se onde ir e foram, sem deixar corações partidos,

que acenderam cigarros em vagões de carga, vagões de carga, vagões de carga que rumavam ruidosamente pela neve até solitárias fazendas dentro da noite do avô,

que estudaram Plotino, Poe, São João da Cruz, telepatia e bop-cabala pois o Cosmos instintivamente vibrava a seus pés em Kansas,

que passaram solitários pelas ruas de Idaho procurando anjos índios e visionários que eram anjos índios e visionários,
(...)

que caíram em prantos em brancos ginásios desportivos, nus e trêmulos diante da maquinaria de outros esqueletos,

que morderam policiais no pescoço e berraram de prazer nos carros de presos por não terem cometido outro crime a não ser sua transação pederástica e tóxica,

que uivaram de joelhos no Metrô e foram arrancados do telhado sacudindo genitais e manuscritos,

que se deixaram foder no rabo por motociclistas santificados e urraram de prazer,

que enrabaram e foram enrabados por esses serafins humanos, os marinheiros, carícias de amor atlântico e caribenho,

que transaram pela manhã e ao cair da tarde em roseirais, na grama de jardins públicos e cemitérios, espalhando livremente seu sêmem para quem quisesse vir,

que soluçaram interminavelmente tentando gargalhar mas acabaram choramingando atrás de um tabique de banho turco onde o anjo loiro e nu veio atravessá-los com sua espada,

que perderam seus garotos amados para as três megeras do destino, a megera caolha do dólar heteressoxual, a megera que pisca de dentro do ventre e a megera caolha que só sabe ficar plantada sobre sua bunda retalhando os dourados fios intelectuais do tear do artesão,
(...)

que adoçaram as trepadas de um milhão de garotas trêmulas ao anoitecer, acordaram de olhos vermelhos no dia seguinte mesmo assim prontos para adoçar trepadas na aurora, bundas luminosas nos celeiros e nus no lago,

que foram transar em Colorado numa miríade de carros roubados à noite, N.C. herói secreto destes poemas, garanhão e Adonis de Denver - prazer ao lembrar das suas incontáveis trepadas com garotas em terrenos baldios & pátios dos fundos de restaurantes de beira de estrada, raquíticas fileiras de poltronas de cinema, picos de montanha, cavernas ou com esquálidas garçonetes no familiar levantar de saias solitário à beira da estrada & especialmente secretos solipsismos de mictórios de postos de gasolina & becos da cidade natal também,
(...)

que sonharam e abriram brechas encarnadas no Tempo & Espaço através de imagens justapostas e capturaram o arranjo da alma entre 2 imagens visuais e reuniram os verbos elementares e juntaram o substantivo e o choque de consciência saltando numa sensação de Pater Omnipotens Aeterni Deus,

para recriar a sintaxe e a medida da pobre prosa humana e ficaram à sua frente, mudos e inteligentes e trêmulos de vergonha, rejeitados todavia expondo a alma para conformar-se ao ritmo do pensamento na sua cabeça nua e infinita,

o vagabundo louco e Beat angelical no Tempo, desconhecido mas mesmo assim deixado aqui o que houver para ser dito no tempo após a morte,

e se reerqueram na roupagem fantasmagórica do jazz no espectro de trompa dourada da banda musical e fizeram soar o sofrimento da mente nua da América pelo amor num grito de saxofone de eli eli lama lama sabactani que fez com que as cidades tremessem até seu último rádio,

com o coração absoluto do poema da vida arrancado para fora dos seus corpos para comer por mais mil anos.