segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Zero Grau de Libra

Ouvindo Moon Over Bourbon Street, do Sting.

Sobre todos aqueles que continuam tentando,
Deus, derrama teu Sol mais luminoso.
Caio Fernando Abreu

O Sol entrou ontem em Libra. E porque tudo é ritual, porque fé, quando não se tem, se inventa, porque Libra é a regência máxima de Vênus, o afeto, porque Libra é o outro (quando se olha e se vê o outro, e de alguma forma tenta-se entrar em alguma espécie de harmonia com ele), e principalmente porque Deus, se é que existe, anda destraído demais, resolvi chamar a atenção dele para algumas coisas. Não que isso possa acordá-lo de seu imenso sono divino, enfastiado de humanos, mas para exercitar o ritual e a fé - e para pedir, mesmo em vão, porque pedir não só é bom, mas às vezes é o que se pode fazer quando tudo vai mal.Nesse zero grau de Libra, queria pedir a isso que chamamos de Deus um olho bom sobre o planeta terra, e especialmente sobre a cidade de São Paulo. Um olho quente sobre aquele mendigo gelado que acabei de ver sob a marquise do cine Majestic; um olho generoso para a noiva radiosa mais acima. Eu queria o olho bom de Deus derramado sobre as loiras oxigenadas, falsíssimas, o olho cúmplice de Deus sobre as jóias douradas, as cores vibrantes. O olho piedoso de Deus para esses casais que, aos fins de semana, comem pizza com fanta e guaraná pelos restaurantes, e mal se olham enquanto falam coisas como: "você acha que eu devia ter dado o telefone da Catarina à Eliete? – e outro grunhe em resposta.Deus, põe teu olho amoroso sobre todos que já tiveram um amor, e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem. Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem – nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa. Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV. Olha bem o rapaz que, absolutamente só, dez vezes repete Moon Over Bourbon Street, na voz de Sting, e chora. Coloca um spot bem brilhante no caminho das garotas performáticas que para pagar o aluguel dão duro como garçonetes pelos bares. Olha também pela multidão sob a marquise do Mappin, enquanto cai a chuva de granizo, pelo motorista de taxi que confessa não Ter mais esperança alguma. Cuida do pintor que queria pintar, mas gasta seu talento pelas redações, pelas agências publicitárias, e joga tua luz no caminho dos escritores que precisam vender barato seu texto- olha por todos aqueles que queria ser outra coisa qualquer a que não a que são, e viver outra vida se não a que vivem. Não esquece do rapaz viajando de ônibus com seus teclados para fazer show na Capital, deita teu perdão sobre os grupos de terapia e suas elaborações da vida, sobre as moças desempregadas em seus pequenos apartamentos na Bela Vista, sobre os homossexuais tontos de amor não dado, sobre as prostitutas seminuas, sobre os travestis da República do Líbano, sobre os porteiros de prédios comendo sua comida fria nas ruas dos Jardins. Sobre o descaramento, a sede e a humildade, sobre todos que de alguma forma não deram certo (porque, nesse esquema, é sujo dar certo), sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma – sobre esses que sobrevivem a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões. Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio - Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça. Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo dia sem desistir, envia teu Sol mais luminoso, esse zero grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.

Caio Fernando Abreu, em O Estado de São Paulo, 24/09/86.

FELIZ NATAL!!!!

sábado, 22 de dezembro de 2007

Por um caminho de sombras


No meio da noite uma porta se abre. Um homem vestindo sobretudo preto surge na calçada. Ele caminha pela Rua da República em direção à João Pessoa. Seus passos são apressados. Com as mãos nos bolsos, ele atravessa a avenida e entra agora no Parque da Redenção. A madrugada é fria. Um rapaz passa por ele e logo desaparece no meio das árvores. Morcegos dão vôos rasantes à sua volta. De repente algo se mexe por entre as sombras. Ele se põe a correr. Próximo à Oswaldo Aranha, cruza com alguns punks, mendigos e vendedores de marijuana. Sobe a Rua Santo Antônio. Anda um pouco mais devagar. Pára em frente a uma casa azul de janelas brancas. Olha para os lados. Toca a campainha. Nada acontece. Toca a campainha novamente. Uma luz se acende no andar superior. Ele dá dois passos para trás. Olha para cima. A porta se abre. Ele coloca a mão dentro do sobretudo. Tira uma rosa. Beija a mulher que está à porta. Os dois entram. As luzes se apagam.
DB

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Posts no blog da Traça!

Oi, Oi, Oi!

Seguem abaixo os links dos últimos posts que fiz no blog do portal da Livraria Traça... de agora em diante vou estar mais seguidamente por lá!

http://www.traca.com.br/main/traca.php?dia=7&mes=11&ano=2007

http://www.traca.com.br/main/traca.php?dia=28&mes=5&ano=2007

Grande abraço!!!!

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Tributo a Caio F.

Do Envelhecer

Venho hoje lhes falar sobre o seguinte tema: velhice. Não somente a velhice dos homens, mas também a velhice dos livros. Dia desses, quando estava eu a folhear algumas edições do inicio do século passado, dei-me conta de como é instigante e curioso o pensar sobre a vida de um livro. Digo vida, pois considero que o nascimento de uma obra se dá no exato momento em que surge a idéia da mesma na cabeça de seu devido autor, e que após esse processo de "maternidade", o livro ganha vida própria, desencilhando-se de seu criador e levando eternamente para o mundo os traços e as idéias de seu pai.Ao ter nas mãos um livro usado, fico a imaginar sua trajetória desde o nascimento até o momento atual. Observo inicialmente a capa, e fico a pensar: Seria ela a comparação da face humana, que exposta aos olhares, dá indícios receosos de seu conteúdo? E as discretas manchas que vão surgindo primeiro no corte, depois na margem das páginas, seriam comparáveis às manchas que, sem que percebamos, vão surgindo na pele e ficando cada vez mais evidentes com o passar dos anos? Ah, e as anotações? Elas sim, são verdadeiros fragmentos de vidas capturados do tempo e salvos entre as páginas como folhas secas guardadas e esquecidas para todo o sempre, até que um folhear as despertem de seu sono quase eterno. É comum ouvirmos dizer que, é preciso antes de morrer, ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. Entre estes três deveres, tenho crença de que, o que mais deixará resquícios de nossa existência é o terceiro. Pois um livro levará nossa mensagem até os tempos mais longínquos. Tomemos como exemplo alguns autores que vieram a ser reconhecidos somente anos, décadas, séculos após deixarem esse mundo, e que são lembrados e se fazem presentes através de suas obras. O que quero lhes dizer é exatamente que, assim como nós homens, os livros têm sua trajetória de vida e carregam consigo as marcas do tempo e dos fatos que presenciaram. Muito além das letras impressas, há encarnada em cada página, uma alma, uma entrega, um testemunho, angustia, desejo, esperança, uma vida... vida essa que envelhece e repousa ali, nas fibras do papel...

DB

Amor sacro e amor profano


Amor sacro e amor profano, pintura de Tiziano Vecellio (pintor renascentista nascido em Pieve di Cadore/Itália por volta de 1490), é também conhecida como Vênus e a donzela. A tela retrata duas mulheres e uma criança situados ao redor de uma fonte de pedra.

O quadro se utiliza de um tema alegórico e mostra uma atmosfera repousada em que natureza e mito se fundem harmoniosamente. As duas figuras de mulher personificam o sentido mítico e arcano da imagem, mas na aparente harmonia, há um jogo de contrastes. Podemos observar que uma das mulheres usa um vestido de cor clara, enquanto a outra está nua e envolta em um manto vermelho. A paisagem de fundo ao lado esquerdo destona da paisagem ao lado direito. A vegetação é composta por cores escuras, enquanto o céu é claro e alaranjado pelo crepúsculo.

É possível detectar o recurso da “paisagem moralista”, que consiste em dividir a paisagem de fundo em duas metades de caráter simbolicamente contrastado. Á esquerda temos uma cidade fortificada e dois coelhos (símbolos de amor animal e fertilidade). Á direita, encontramos uma cena mais rústica e menos luxuosa, mas mais luminosa, com um rebanho de ovelhas e a torre de uma igreja.

As mulheres, de beleza renascentista, tem características similares, havendo-se pensado em algumas ocasiões que tratavam-se da mesma pessoa. Uma donzela vestida luxuosamente, sentada junto de um cupido e sendo observada pela outra que está despida. A figura vestida segura em suas mãos uma vasilha cheia de ouro, que simboliza a efêmera felicidade da terra, e a despida sustenta uma lamparina com a chama acesa (presença de Deus) que simboliza a felicidade eterna do céu. O fato de estar despida representa o desapego às coisas materiais. Trata-se de uma cena alegórica influenciada pela concepção neoplatônica renascentista, típica de Marsílio Ficino, segundo qual a beleza terrena é um reflexo da beleza celestial.

Panofsky, em seu livro Estudios sobre iconología (Editora Alianza, Madrid - 1979) faz a seguinte afirmação sobre a obra:


“Suas figuras não representam um contraste entre o bem e o mal sendo que simbolizam um princípio em dois modos de existência e dois graus de perfeição. A nobre despida não deprecia a caricatura mundana, cuja posição promove a comparação. Pois com um olhar generosamente persuasivo parece estar comunicando os segredos de uma região mais elevada.”

A última frase da afirmação de Panofsky nos permite relacionar a pintura ao trecho de Enéadas I, 6 (Plotino) que diz:


“Fujamos, pois, à cara pátria. Mas como partir, como preparar esta fuga? Não certamente com os nossos pés, porque eles sempre nos levam de um lugar para outro da Terra. Nem é preciso aparelhar carruagens ou navios, mas abandonar todas essas coisas, e não lhes dirigir os nossos olhares, fechar os olhos corporais e despertar outros, que todos possuem mas que poucos usam.”

O trecho remete à um conceito de estética que não baseia-se na visão material das coisas e sim em uma beleza de nível espiritual, que não é facilmente vista, pois não são os olhos “corporais” que podem detectá-la, mas sim uma percepção interna que temos de desenvolver.

Analisando o seguinte trecho da Opera aliquot de Celio Calcagnini, podemos ter uma noção mais ampla da linguagem utilizada na pintura de Tiziano.


“Pensas que os mistérios deixam de ser mistérios quando são divulgados? Eu penso o contrário. Pensas acaso que os tesouros devam permanecer ocultos? Esta é a opinião dos avarentos. De que serve uma música escondida? Os mistérios permanecem sempre mistérios, desde que não sejam comunicados a ouvidos profanos. [...] Porque é como diz Hesíodo: a palavra é o maior tesouro do homem. Mas um homem prudente deve sempre alternar a palavra e o silêncio.”

Ao propor a mensagem de sua obra, através dos símbolos escolhidos, de forma que não os deixá-se explícitos, Tiziano comunicava a verdadeira beleza da obra somente a aqueles que estariam aptos a serem receptores de sua mensagem.

A linguagem dos símbolos representa a oposição ao materialismo. Podemos considerar que ao utiliza-los, estamos “abrindo mão de todas essas coisas” de concretude e alcançando uma percepção capaz detectar a essência da obra.


“Como diz Dioniso, o raio divino não pode chegar até nós se não for envolto em véus de poesia.”
(Egidio da Viterbo)

Porto Alegre, 27 de abril de 2007.
DB

A Bela e a Correnteza


Pelo espaço de um piscar
vi seu corpo entregar-se
como oferenda ao reino das águas.
Parecia uma boneca de porcelana
pálida e com os olhos arregalados de espanto.
Seus lábios abriam-se para espalhar seu canto
mas a imensidão de um rio corrente
a tomava e a fazia calar.
Incansavelmente lutava
para manter-se perto da margem e para flutuar,
mas em um golpe de covardia
as águas rudes e fortes diante da delicadeza da bela moça
a fizeram naufragar
e novamente pelo espaço de um piscar
vi o azul de seus olhos se desfazendo
e seu corpo finalmente flutuou sobre o leito do rio.
Nada mais importava agora,
a bela com sua beleza,
perdia a vida diante da correnteza
e nada pôde ser feito.
Em seu destino já estava marcado,
seu último dia seria alegre, sublime e com muito amor
mas em um momento de descuido se faria o horror
e uma alma vagaria pela eternidade
zelando pela calmaria daquelas águas.
DB