quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

“Eu te amei muito. Nunca disse, como você também não disse, mas acho que você soube. (...) Pena também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não devia ter vergonha do que é bonito. Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas — se um dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direi delas, caso contrário não será preciso. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.”
 
Caio F.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Poema - Cazuza

Eu hoje tive um pesadelo
E levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo
E procurei no escuro
Alguém com o seu carinho
E lembrei de um tempo

 Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo

Hoje eu acordei com medo
Mas não chorei, nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito
Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim

De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás
 



Letra de Cazuza, musicada por Frejat e interpretada por Ney Matogrosso.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Na cama por causa de Madonna



Tentei ignorar, juro. Mas foi completamente impossível. Acontece que moro a duas quadras do Caesar Park, onde Madonna ficou. Do meu monástico 12º andar, dias e noites ouvia lá embaixo os gritos daquela involuntária homenagem póstuma a Fellini. Certa manhã, acordei com um barulho estranhíssimo sob a janela: helicópteros sobrevoavam a área. E, mesmo tendo que desviar da Augusta para chegar à Paulista nas minhas peregrinações urbanas, não consegui mais ignorar. Mesmo decidindo não ir ao show (pruridos ideológicos, tipo eeeu, colaborar com esse Grosseiro Símbolo da Alienação Capitalista?), acabei indo. Na última hora, meu amigo Denis Escudero acenou com um irrecusável convite. E fui.
Safári, claro. Uma hora de ônibus, duas na fila, mais três até começar. Dúvidas pleistocênicas, oh Deus, já não tenho idade, devia ficar em casa lendo Cervantes no original, que juventude idiota, não tenho mesmo vergonha na cara & etc. Então as luzes apagaram, a bailarina seminua desceu pela corda. E eu adorei. No dia seguinte, de cama por causa da Madonna, descobri algo inteiramente insuspeitado – ela é do bem.
Nem ofensiva nem obscena, Madonna representa tudo aquilo que todos nós gostaríamos de ser e ter: o prazer sem culpa. Acho que uma figura assim não existiria em tempos e espaços sem o vírus da aids, que bloqueou a prática sexual e incendiou todas as formas imaginárias e indiretas da sexualidade. Veja-se, no mundo inteiro, a maré de revistas, filmes, vídeos pornográficos, sexo por telefone e todas as formas de, digamos, fazer a coisa da maneira mental, não física – e portanto sem riscos. Madonna faz no palco tudo aquilo que as pessoas (as saudáveis) fazem na cabeça. Exemplo – um crioulo fortíssimo, com sotaque baiano, vendendo cerveja na fila, gritava o que todo mundo sentia: “Minha gente, quero ser que nem a Madonna para dar mais que chuchu na cerca!”
Infelizmente, observei outras atitudes, também sintomáticas da era da aids. No palco (fantasia) pode, no real (vida) não. A drag queen montadésima foi atacada aos gritos de “bicha! louca! piranha!”. Tudo na maior agressividade. Mas, durante as duas horas da realidade fantástica instaurada pelo show, há respeito no ar. A vida suposta de Madonna e seu reflexo coreografado (belamente, pelo brasileiro Alexandre Magno), mesmo entre berros excitados, é recebida com encantamento. Madonna é um pouco como aquele transatlântico que atravessa ao longe a madrugada em Amarcord, de – justamente – Fellini.
Na saída (Sáfari Parte II, o Retorno) Denis observou: “Engraçado, parece que tem uma espécie de tristeza no ar”. E tinha. Pelas ladeiras do Morumbi, a noite tinha ficado fria, guardas tentavam organizar um trânsito histérico, os ônibus não vinham, as ruas pareciam sujas, as calçadas destruídas. Fugaz, o sonho passara. Ninguém era mais Madonna. Nem ela, de volta ao hotel, enjaulada lá no alto, enquanto cá embaixo o povo só queria receber uma espécie de autorização – a de que se pode também, mesmo em tempos sombrios e sem graça, ser meio Madonna na vida.
A moça fez um enorme bem ao astral do Brasil. Parece que gostou de nós, e a gente precisa tanto, especialmente o Rio de Janeiro. No meio de dias estranhos, pesados (as mortes de Fellini, River Phoenix, do maravilhoso Felipe Pinheiro, bombas por toda a Alemanha, lama grossa em Brasília), Madonna deixou no ar um sopro de vitalidade. Saúde, alegria, tesão. Com ou sem vírus e crise, Madonna dá vontade dessa coisa sagrada: viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe. E pouco importa se Ele não existe, porque ela também não existe. Existem símbolos. São eles que mobilizam e, mesmo quando não bastam, são necessários. Melhor ainda se forem belos. E, repito, do bem. Do lado certo da luz, compreende?

Caio Fernando Abreu 
O Estado de S. Paulo, 14/11/1993

domingo, 11 de novembro de 2012

Ao som de Suzanne Vega


Meu nome é Caio F. Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você nas escadas


                 Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia – eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy netal –, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.
                Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver.  Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como – eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.
                No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto – preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio – tão cansado, tão causado – qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi de boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios – que importa?
                (Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio – virá? virá? – e minto não, já não preciso.) Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukowskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como: eu so o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espírito no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
                Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza de que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes de estas palavras todas caírem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.

Caio Fernando Abreu – O Estado de S. Paulo, 11/11/1987

domingo, 28 de outubro de 2012

Beta, beta, Bethânia



Então ela chega e diz: "Dá licença, rock and roll, que a tia vai cantar o amor"


Os muitos darks que me perdoem, mas Maria Bethânia é fundamental. Sei, vocês vão dizer que ela é brega, careta, exagerada, melodramática. Pode ser. Mas essa coisa chamada vida onde estamos metidos até o pescoço, às vezes não é brega, careta, melodramática? A Vida é mais Nelson Rodrigues ou mais Clarice Lispector? Mais Augusto dos Anjos ou Emily Dickinson? Fassbinder ou Jacques Demy? Philip Glass ou Dead Kennedys? Mais Sex Pistols ou mais Cecília Meireles? Bukowski ou Bergman?

Tudo isso, sim, e muito mais. O engarrafamento às seis da tarde de uma sexta-feira de chuva, na marginal do Tietê, pode ser uma emoção-Titãs (tipo Bichos Escrotos). Transar com a garota prostituta da rua Augusta, de minissaia de couro e correntinha no tornozelo, pode ser uma emoção-Dalton Trevisan. Dar um espirro bem na hora de dizer eu-te-amo pode ser uma emoção-Woody Allen. Assim por diante, cada coisa sendo uma coisa diferente. Porque o que vai sendo vivido e sentido por cada um é tão particular que, mesmo lugar comum ou já cantado em prosa e verso, é para sempre também único. Infinitiva e indivisivelmente subjetivo.

Nossa, como estou me dispersando. O que quero dizer é muito simples – adoro Maria Bethânia. Por um tempo, aposentei Eurythmics, The Cure, Talking Heads, Legião Urbana, Sting, Paul Simon – só consigo Bethânia.

Ando tomado por emoções-Bethânia. Essas, que estão morrendo à míngua, poque não é moderno ter emoções. Não é in sentir amor, envolver-se. Ficou out dizer coisas como “quero ficar com você/ e é tão fundo que eu posso dizer/ que o fim do mundo não vai chegar mais” ou “parece bolero/ te quero, te quero/ dizer que não quero/ teus beijos nunca mais” ou “quando os caminhos se separam/ não tem razão que dê mais jeito” ou “é tão difícil ficar sem você/ o teu amor é gostoso demais”. É burro cantar coisas que eu, tu, ele, nós sentimos? É brega ter desejos e carências e dores e suspiros assim, de gente?

Sentir não é brega. Ao contrário: não existe nada mais chique. Emocione-se e seja o rei de sua insensatez. Seja nobre, seja divino no desconcerto das emoções. Maria Bethânia é muito chique, e quase ninguém está vendo isso. Em Dezembros, sem querer fazer nenhuma revolução, ela chega e diz: “Dá licença, rock and roll, que a titia vai cantar o amor”. E eu peço: Crianças, cessem as guitarras, os teclados, os sintetizadores – um minuto só – e prestem atenção na voz quente dessa mulher linda do jeito inverso da beleza, cantando (que ousadia!) o amor.

Sei: a aids está solta, e o que era possibilidade de amor agora é possibilidade de morte. Nem por isso é possível parar de amar. Você consegue? Eu não. E não tenho medo. Sem platonismos, nem zen-budismos: quero que pinte o amor-Bethânia, dançar de rosto colado, pegar na mão à meia-luz, desenhar com a ponta dos dedos cada um dos teus traços, ficar de olho molhado só de te ver, de repente e, se for preciso, também virar a mesa, dar tapa na cara, escândalo na esquina, encher a cara de gim, te expulsar de casa e te pedir pra voltar.

Darks, pós-modernos, minimalistas, glitters, apocalípticos, concretistas, skinheads, me perdoem. Na noite de sábado, caminhando sozinho pela avenida Paulista, o quarto-crescente brilhando sobre a torre da TV Globo, uma vontade desesperada de ter alguém – as únicas canções que me vieram à mente para cantar baixinho foram canções de Bethânia. Doía fundo estar perdido na grande cidade, era completamente sem remédio ser só uma pessoazinha machucada. Mas brotou então um orgulho tão grande de ser ainda capaz de sentir o coração cheio de emoções-Bethânia que era quase como uma felicidade. Sagrada, do avesso – que importa? Era real, era vivo. Isso é muito, e Bethânia canta.


Caio Fernando Abreu - O Estado de S. Paulo, 11/02/1987

terça-feira, 3 de julho de 2012

Ai Se Sêsse

Se um dia nós se queresse;
Se nós dois se impariásse,
Se juntinho nós dois vivesse!
Se juntinho nós dois morasse
Se juntinho nós dois drumisse;
Se juntinho nós dois morresse!
Se pro céu nós assubisse?
Mas porém, se acontecesse
qui São Pêdo não abrisse
as portas do céu e fosse,
... te dizê quarqué toulíce?
E se eu me arriminasse
e tu cum insistisse,
prá qui eu me arrezorvesse
e a minha faca puxasse,
e o buxo do céu furasse?...
Tarvez qui nós dois ficasse
tarvez qui nós dois caísse
e o céu furado arriasse
e as virge tôdas fugisse!!!

(Zé da luz - Cordel do Fogo Encantado)

sábado, 16 de junho de 2012

terça-feira, 12 de junho de 2012

100 Coisas Sobre Mim | DANIEL BRAGA


1. Gosto (e sinto necessidade) de viajar
2. Amo livros
3. Trabalhei alguns anos como livreiro
4. Me tornei agente de viagens
5. Fiz curso de comissário de voo
6. Resolvi morar um tempo em Buenos Aires
7. Sou canceriano
8. Gosto de meninos
9. e de meninas também
10. Não sou nada sem meus amigos
11. Sempre estou disponível pra eles
12. Minha família também é importante pra mim
13. Posso dizer que já tive alguns amores
14. Curto a vida de casado e a de solteiro com a mesma intensidade
15. Sou saudosista
16. Dou muito valor às minhas experiências, sejam elas boas ou nem tanto
17. Não gosto de gente que fica se lamentando
18. Me sinto desconfortável usando roupa social
19. Tenho fama de pagodeiro
20. Curto festas
21. Também curto estar em casa escutando música ou vendo um bom filme
22. Adoro ir ao cinema sozinho
23. Sempre que vou a um videokê, canto alguma dessas músicas: "Evidências" ou "Deslizes"
24. Muitos dos meus amigos lembram de mim ao ouvirem Fafá de Belém
25. Me arrepio toda vez que escuto Elis Regina cantando "Como Nossos Pais"
26. Cresci na zona sul de Porto Alegre
27. Sempre fui fascinado pelo jornalismo, mas nunca tive contato com a profissão
28. Cursei duas faculdades (turismo e filosofia), mas não terminei nenhuma delas
29. Pretendo terminá-las
30. Não sigo nenhuma religião
31. Aliás, não sigo radicalmente nenhuma ideologia
32. Mesmo assim, tenho opinião formada sobre muitas coisas
33. Essas opiniões podem mudar a qualquer momento
34. Nunca estive em um funeral
35. Gosto de pensar sobre a vida
36. Falo sozinho seguidamente
37. A culinária italiana é a minha preferida
38. Amo cafés, de todos os tipos
39. Já tive cabelo igual ao da Amelie Poulain
40. Houve uma vez também em que tingi o cabelo de azul
41. Sou fã incondicional de Caio Fernando Abreu
42. Tenho sempre algum livro dele na mochila ou embaixo do travesseiro
43. Detesto acordar cedo
44. Minha cabeça funciona melhor à noite
45. Prefiro o verão ao inverno
46. Sexo é bom, mas acredito que dormir de conchinha pode ser ainda melhor
47. Me derreto todo se alguém toca violão pra mim
48. Definitivamente não amo uma pessoa só pelo fato de ela ser "bonita"
49. Sou romântico, mas também posso ser o maior canalha que esse mundo já viu
50. Não fumo
51. Marcas e grifes não me dizem muita coisa
52. Troco um passeio no shopping por um passeio no parque
53. Conversas em mesas de bar me parecem ótimas
54. Já fiz teatro
55. Nunca quebrei nenhuma parte do meu corpo
56. Gostaria de ter uns 10kg a mais
57. Também adoro chocolate, como 99% da população
58. Sorvete de uva faz milagres ao meu paladar
59. Quando criança, meu maior desejo era ter um pônei e um balde de Lego
60. Não tive nenhum dos dois
61. O primeiro filme que assisti no cinema foi: "Gasparzinho - O Fantasminha Camarada"
62. Me divirto muito assistindo comédias românticas
63. Nem por decreto assisto filmes de terror
64. Podem falar e pensar o que quiserem, mas minha música de formatura será "Lua de Cristal"
65. Tenho muita vontade de conhecer o Equador
66. Gosto de escrever
67. Tempos atrás publiquei alguns contos numas antologias
68. O mar é algo que me encanta
69. Não gosto que me vejam chorando
70. Já apontaram uma arma pra mim
71. Tenho amigos que poderiam escrever com fidelidade a minha biografia
72. Sou o filho mais novo e tenho dois irmãos
73. Já tive uma cocota
74. Não sei me equilibrar em nada que tenha rodinhas
75. Gosto de deitar na grama e ficar olhando o céu
76. Gosto de fotografias
77. Queria ter estado em Woodstock
78. Me aborreço quando vou comprar roupas porque tudo que experimento fica grande
79. Costumo me dedicar muito às pessoas que amo
80. As pessoas que amei são eternas pra mim. Não tente me fazer esquecê-las.
81. Sou observador
82. Aprendi a batalhar pelos meus objetivos
83. Uma vez quase me afoguei
84. Meu quarto é meu porto seguro
85. Adoro aquele friozinho na barriga que a gente sente quando desce lomba, anda de avião ou de elevador
86. Acredito que um abraço apertado serve de remédio pra muitas coisas
87. Beijo na boca é uma delícia
88. Não me envergonho de nada que eu possa sentir
89. Eu casaria comigo
90. Gostaria de visitar Neuschwanstein (Castelo do Rei Louco da Baviera), que inspirou Walt Disney a criar o Castelo da Cinderela do Magic Kingdom
91. Geralmente acordo com um bom humor que chega a ser irritante
92. Não tenho tatuagem
93. Gosto muito de dançar tudo o que se dança junto... forró, pagode, música gaúcha, dança de salão.
94. Escrevo cartas
95. Ainda quero pular de paraquedas
96. Brincava de casinha com meus soldadinhos
97. Nunca tive uma festa surpresa
98. Sempre me pergunto qual é a lembrança que as pessoas vão ter de mim quando eu morrer
99. Prefiro Toddy ao tédio
100. Sou muito feliz

quinta-feira, 7 de junho de 2012

 
Não morro de amores
por pessoas sem mistério
quando se é muito transparente
muito risonho e educado
é raro ser levado a sério
...prefiro os mais silenciosos
os que abrem a boca de menos
os mais serenos e mais perigosos
aqueles que ninguém define
e que sempre analisam os fatos
por um novo enfoque
prefiro os que têm estoque
aos que deixam tudo à mostra na vitrine.

(- Martha Medeiros in “Poesia Reunida” -)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Eis um vídeo muito bacana sobre Caio Fernando Abreu.

Ao que percebe-se, foi produzido para divulgação da biografia escrita por Paula Dip, "Para Sempre Teu, Caio F."

Faltam alguns depoimentos importantes como, por exemplo, do Luciano Alabarce, Gilberto Grawonski, Grace Gianoukas, Lygia Fagundes Telles, João Gilberto Noll, Jaqueline Cantore, Cláudia Abreu e da própria Paula Dip. Mas tem gravações raras, como a que mostra o Caio em um período em que esteve em Saint-Nazaire (França) e escreveu "Bem longe de Marienbad"; depois outra, dando entrevista, anos mais tarde, no Parque Marinha em Porto Alegre, quando já havia descoberto ser portador do vírus HIV.

Clique aqui para assistir.


"Eu gosto de estar vivo... e eu tenho consciência agora de que
eu gosto de estar vivo... e eu acho que isso é sinônimo de ser feliz."


terça-feira, 1 de maio de 2012

A BEIRA DO MAR ABERTO

..................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................e de novo me vens e me contas do mar aberto das costas de tua terra, do vento gelado soprando desde o pólo, nos invernos, sem nenhuma baía, nenhuma gaivota ou albatroz sobrevoando rasante o cinza das águas para mergulhar, como certa vez,em algum lugar, rápido iscando um peixe no bico agudo, mas essas outras águas que lembro eram claras verdes, havia sol e acho que também um reflexo de prata no bico da ave no momento justo do mergulho, nessas águas de que me falas quando me tomas assim e me levas para histórias ou caminhadas sem fim não há verde nem é claro, o sol não transpõe as nuvens, e te imagino então parado sozinho sobre a faixa interminável de areia, o vento que bate em teu rosto, as mãos comos dedos roxos de frio enfiadas até o fundo dos bolsos, o vento e novamente o vento que bate em teu rosto, esse mesmo que me olha agora, raramente, teu olho bate em mim e logo se desvia, como se em minhas pupilas houvesse uma faca, uma pedra, um gume, teu rosto mais nu que sempre, à beira-mar, com esse vento a bater e a revolver teus cabelos e pensamentos, e eu sem saber o que me revolve agora quando teu olho outra vez escorrega para fora e longe do meu, entre tua testa larga de onde às vezes costumas afastar os cabelos com ambas as mãos, numa mistura de preguiça e sensualidade expostas, e ,quando teu olho se afasta assim, não sei para onde, talvez para esse mesmo lugar onde te encontravas ontem, à beira do mar aberto, onde não penetro, como não te penetro agora, mas é quando a pedra ou faca no fundo do meu olho afasta o teu é que te olho detalhado, e nunca saberás quanto e como já conheço cada milímetro da tua pele, esses vincos cada vez mais fundos circundando as sobrancelhas que se erguem súbitas para depois diluírem-se em pêlos cada vez mais ralos, até a região onde os raspas quase sempre mal, e conheço também esses tocos de pelos duros e secretos, escondidos sob teu lábio inferior, levemente partido ao meio, e tão dissimulado te espio que nunca me percebes assim, te devassando como se através de cada fiapo, de cada poro, pudesse chegar a esse mais de dentro que me escondes sutil, obstinado, através de histórias como essa, do mar, das velhas tias, dasiniciações, dos exílios, das prisões, das cicatrizes, e em tudo que me contas pensando, suponho, que é teu jeito de dar-se a mim, percebo farpado que te escondes ainda mais, como se te contando a mim negasse que deliberado a possibilidade de te descobrir atrás e além de tudo que me dizes, é por isso que me escondo dessas tuas histórias que me enredam cada vez mais no que não és tu, mas o que foste, tento fugir para longe e a cada noite, como uma criança temendo pecados, punições de anjos vingadores com espadas flamejantes, prometo a mim mesmo nunca mais ouvir, nunca mais ter a ti tão mentirosamente próximo, e escapo brusco para que percebas que mal suporto a tua presença, veneno veneno, às vezes digo coisas ácidas e de alguma forma quero te fazer compreender que não é assim, que tenho um medo cada vez maior do que vou sentindo em todos esses meses, e não se soluciona, mas volto e volto sempre, então me invades outra vez com o mesmo jogo e embora supondo conhecer as regras, me deixo tomar inteiro por tuas estranhas liturgias, a compactuar com teus medos que não decifro, a aceitá-los como um cão faminto aceita um osso descarnado, essas migalhas que me vais jogando entre as palavras e os pratos vazios, torno sempre a voltar, talvez penalizado do teu olho que não se debruça sobre nenhum outro assim como sobre o meu, temendo a faca, a pedra, o gume das tuas histórias longas, das tuas memórias tristes, cheias de corredores mofados, donzelas velhas trancadas em seus quartos, balcões abertos sobre ruazinhas onde moças solteiras secam o cabelo, exibindo os peitos, tornarei sempre a voltar porque preciso desse osso, dos farelos que me têm alimentado ao longo deste tempo, e choro sempre quando os dias terminam porque sei que não nos procuraremos pelas noites, quando o meu perigo aumenta e sem me conter te assaltaria feito um vampiro faminto para te sangrar e te deixar mudo, sem nenhuma história a te esconder de mim, enquanto meus dentes penetrando nas veias da tua garganta arrancassem do fundo essa vida que me negas delicadamente, de cada vez que me procuras e me tomas, contudo me enveneno mais quando não vens e ninguém então me sabe parado feito velho num resto de sol de agosto, escurecido pela tua ausência, e me anoiteço ainda mais e me entrevo tanto quando estás presente e novamente me tomas e me arrancas de mim me desguiando por esses caminhos conhecidos onde atrás de cada palavra tento desesperado encontrar um sentido, um código, uma senha qualquer que me permita esperar por um atalho onde não desvies tão súbito os olhos, onde teu dedo não roce tão passageiro no meu braço, onde te detenhas mais demorado sobre isso que sou e penses quem sabe que se aceito tuas tramas, e vomitas sobre mim, depois puxas a descarga e te vais, me deixando repleto dos restos amargos do que não digeriste, mas mesmo assim penses que poderias aceitar também meus jogos, esses que não proponho, ah detritos, mas tudo isso é inútil e bem sei de como tenho tentado me alimentar dessa casca suja que chamamos com fome e pena de pequenas-esperanças, enquanto definho feito um animal alimentado apenas com água, uma água rala e pouca, não essa densa espessa turva do mar de que me falaste. no começo da tarde que agora vai-se indo devagar atrás das minhas costas, e parado aqui ao teu lado, sem que me vejas, lentamente afio as pedras e as facas do fundo das minhas pupilas, para que a noite não me encontre outra vez insone, recompondo sozinho um por um dos teus traços, dos teus pêlos, para que quando esses teus olhos escuros e parados como as águas do mar de inverno na praia onde talvez caminhes ainda, enquanto me adestro em gumes, resvalarem outra vez pelos meus, que seu fio esteja tão aguçado que possa rasgar-te até o fundo, para que te arrastes nesse chão que juncamos todos os dias de papéis rabiscados e pontas de cigarro, sangrando e gemendo, a implorar de mim aquele mesmo gesto que nunca fizeste, e nem mesmo sei exatamente qual seria, mas que nos arrancasse brusco e definitivo dessa mentira gentil onde não sei se deliberados ou casuais afundamos pouco a pouco, bêbados como moscas sobre açúcar, melados de nossa própria cínica doçura acovardada, contaminados por nossa falsa pureza, encharcados de palavras e literatura, e depois nos jogasse completamente nus, sem nenhuma história, sem nenhuma palavra, nessa mesma beira de mar das costas da tua terra, e de novo então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és e unicamente assim é que me queres e me utilizas todos os dias, e nos usamos honestamente assim, eu digerindo faminto o que o teu corpo rejeita, bebendo teu mágico veneno porco que me ilumina e anoitece a cada dia, e passo a passo afundo nesse charco que não sei se é o grande conhecimento de nós ou o imenso engano de ti e de mim, nos afastamos depois cautelosos ao entardecer, e na solidão de cada um sei que tecemos lentos nossa próxima mentira, tão bem urdida que na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos, desviando os olhos, corriqueiros, à medida que o dia avança estruturando milímetro a milímetro uma harmonia que só desabará levemente em cada roçar temeroso de olhos ou de peles, os gelos, os vermes roendo os porões que insistimos em manter indevassáveis, até que o não-feito acumulado durante todo esse tempo cresça feito célula cancerosa para quem sabe explodir em feridas visíveis indisfarçáveis, flores de um louco vermelho na superfície da pele que recusamos tocar por nojo ou covardia ou paixão tão endemoninhada que não suportaria a água benta de seu próprio batismo, e enquanto falas e me enredas e me envolves e me fascinas com tua voz monocórdia e sempre baixa, de estranho acento estrangeiro, penso sempre que o mar não é esse denso escuro que me contas, sem palmeiras nem ilhas nem baías nem gaivotas, mas um outro mais claro e verde, num lugar qualquer onde é sempre verão e as emoções limpas como as areias que pisamos, não sabes desse meu mar porque nada digo, e temo que seja outra vez aquela coisa piedosa, faminta, as pequenas-esperanças, mas quando desvio meu olho do teu, dentro de mim guardo sempre teu rosto e sei que por escolha ou fatalidade, não importa, estamos tão enredados que seria impossível recuar para não ir até o fim e o fundo disso que nunca vivi antes e talvez tenha inventado apenas para me distrair nesses dias onde aparentemente nada acontece e tenha inventado quem sabe em ti um brinquedo semelhante ao meu para que não passem tão desertas as manhãs e as tardes buscando motivos para os sustos e as insônias e as inúteis esperas ardentes e loucas invenções noturnas, e lentamente falas, e lentamente calo, e lentamente aceito, e lentamente quebro, e lentamente falho, e lentamente caio cada vez mais fundo e já não consigo voltar à tona porque a mão que me estendes ao invés de me emergir me afunda mais e mais enquanto dizes e contas e repetes essas histórias longas, essas histórias tristes, essas histórias loucas como esta que acabaria aqui, agora, assim, se outra vez não viesses e me cegasses e me afogasses nesse mar aberto que nós sabemos que não acaba nem assim nem agora nem aqui...............................................................................................................................................................

Caio Fernando Abreu - Os Dragões não Conhecem o Paraíso

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Linda, uma história horrível

"Você nunca ouviu falar em maldição,
nunca viu um milagre,
nunca chorou sozinha num banheiro sujo,
nem nunca quis ver a face de Deus."
(Cazuza: "Só as mães são felizes")


Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.

Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.

— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.

Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.

— A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa.

Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.

— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.

— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.

— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete.

Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:

— Uns noventa e cinco, então.

Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar:

— O quê?

— A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.

Ela riu:
— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café?

— Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.

As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.

— Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café.

—A senhora não devia. Café tira o sono.

Ela sacudiu os ombros:

— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.

A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.

— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.

Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café.

— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.

— Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.

Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:

— Me dá o fogo.

Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta:

— Bonito, o isqueiro.

— É francês.

— Que é isso que tem dentro?

— Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.

Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado.

— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.

Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.

— Vim, mãe. Deu saudade.

Riso rouco:

— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?

Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:

— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal.

Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara.

— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.

— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?

Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.

— E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto?

Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.

— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.

Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.

— Deixa eu te ver melhor — pediu.

Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.

— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro.

— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias.

— Perdeu cabelo, meu filho.

— É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro?

— Cigarro, mãe. Poluição.

Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.

— Mas vai tudo bem?

— Tudo, mãe.

— Trabalho?

Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:

— Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.

— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?

A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:

— Coitada. Mais esclerosada do que eu.

— A senhora não está esclerosada.

— Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.

— A Cândida morreu, mãe.

Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.

— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho?

— Comi no avião.

Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.

— Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta?

— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.

— E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.

Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido.

— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.

Ela voltou a olhar o teto:

— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.

Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi?

— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.

— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique.

— Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.

— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.

Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.

— E por quê?

— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada.

Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:

— Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.

Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.

— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.

Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.

Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.






Caio Fernando Abreu