Meu nome é Caio F. Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você nas
escadas
Preciso
de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias para ouvir,
meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado,
cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over,
a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade
insana de viver. Preciso de alguém que
eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro
lado e sentir uma resposta como – eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho
humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te
salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.
No
meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto –
preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não
adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede,
meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de
tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro
olhar que não o meu próprio – tão cansado, tão causado – qualquer coisa vasta e
abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o
de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O
caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi de
boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro
engano de instantes enganosos transitórios – que importa?
(Mas
finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis.
Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio – virá? virá?
– e minto não, já não preciso.) Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite
tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu
ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukowskiano. Que me
desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem
dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como: eu so o outro ser
conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo
de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da
minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as
pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego
do outro e misturar coxas e espírito no fundo do outro-você, outro-espelho,
outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de
você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da
parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
Tenho
urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me
tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza de que inventar
nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor
desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes de estas
palavras todas caírem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no
lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do
embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse
possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.
Caio Fernando Abreu – O Estado de S. Paulo, 11/11/1987
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